Gula dafricaEm 2007, a pedido da Editora Senac do Distrito Federal, escrevi um  pequeno livro sobre a história da influência africana na gastronomia brasileira. Ao texto dei o nome de “Gula D’África”, ao qual foi acrescentado o subtítulo “O sabor africano na mesa brasileira” pela organizadora da obra, Flávia Portela, da organização não governamental CaraECulturaNEGRA, instituição coordenadora do projeto. Foi o meu terceiro livro sobre a temática gastronômica feito para o Senac, embora meu talento para a cozinha seja restrito ao cozimento de miojo. Os outros dois, para a coleção Cozinha Capital, sobre restaurantes referenciais de Brasília, foram “Beirute – aromas, amores e sabores” e “O bistrô de Alice”. Os textos são crônicas sobre a história e os pequenos dramas humanos dos lugares por mim pesquisados. Até agosto, o Senac irá lançar outro livro baseado em um texto meu, sobre a trajetória do calabrês Antonello Monardo, dono de uma reverenciada marca de café servida em muitos dos melhores bares e restaurantes do Distrito Federal.

Embora também tenha sido uma encomenda do Senac, o “Gula D’África” exigiu mais do que uma rotina de entrevistas e observação para a feitura do texto. Tratar da história da gastronomia afrobrasileira exigiu um trabalho razoável de pesquisa, interpretação e compreensão da natureza, por muitas vezes, mística, dos ingredientes, temperos, cheiros e sabores das comidas aqui miscigenadas, ao longo de quase cinco séculos, por mãos negras e brancas. Para levar a cabo essa empreitada, pude me valer da minha memória baiana, afetiva e original, alimentado que fui, desde menino, pelas delícias do caruru, vatapá, mugunzá, xinxim, sarapatel, acarajé e abará, para ficar só em poucos e conhecidos exemplos. Quando sentei para escrever, me veio da veia esse texto de abertura do livro:

 “Em um mundo dominado por chefs trajados de branco, debruçados sobre os clarões das labaredas de pratos flambados, é bom saber que esses ourives da culinária são assépticos herdeiros de mãos negras lavadas de sabão barato e história. E não somente no Brasil, mas em todas as Américas e no Caribe, nas cozinhas reluzentes da Espanha e mesmo de Paris. Porque vieram da África as iguarias multicoloridas dos temperos bravos, a pimenta malagueta e o dendê, o leite de côco e a banana, o inhame e o quiabo, o jiló e o gengibre. Vieram, pois, nas trouxas do colonizador, nas cargas dos mascates, mas, principalmente, foram trazidas de forma imaterial, transmutadas em resistência cultural na memória dos escravos vomitados, aqui e alhures, das barrigas inchadas e malcheirosas das naus negreiras. Essas especiarias caíram, generosas, sobre as mesas das autoridades, dos senhores de terra, dos vice-reis dos engenhos. Vieram misturadas ao sangue e à dor de quase quatro milhões de almas humanas arrastadas, sob ferros, de um lado para o outro do Atlântico. No Brasil, deram a base cultural da identidade nacional, do mugunzá à feijoada, ora por abstrair o sentido original das ervas e raízes trazidas de além mar, ora por reinventar os sabores africanos nas terras de pouso forçado.”

Pois bem, fui informado, na semana passada, que esse livrinho precioso, de apenas 89 páginas editadas num formato esguio e retangular, ganhou o Gourmand World Cookbook Awards 2009, o Prêmio Mundial de Livros de Cozinha, na categoria “língua estrangeira”. Bateu, assim, obras produzidas por autores de outros 26 países, inclusive de mecas gastronômicas como França, Espanha, Itália e Grécia. O prêmio foi criado em 1995, na Espanha, pelo francês radicado em Madri Eduard Cointreau. Desde então, virou uma espécie de “Oscar” da gastronomia mundial, concedido, anualmente, e entregue em lugares diferentes. Ano passado, foi em Jacarta, na Indonésia. Este ano, será em Paris, no dia 1º de julho, no famoso teatro Comédie Française, imortalizado por Moliére. Infelizmente, eles não pagam as despesas de viagem e hospedagem dos agraciados.

Na verdade, nem é tão ruim assim. A premiação poderia ser usada, por litigantes de má fé, para reforçar a suprema tese de que jornalistas não passam, no fim das contas, de cozinheiros frustrados.

No mais, não ando mesmo invejando travessias aéreas para Paris, ultimamente.

Em tempo: No afã de enaltecer as minhas peripécias gastronômicas, cometi a enorme injustiça de não citar o nome de Marta Moraes, na verdade, a verdadeira responsável pela concepção do “Gula d’África” e de muitos outros livros que deram nome e fizeram crescer a Editora Senac do Distrito Federal. Foi Marta, em nome do Senac,  quem me convidou para escrever o livro, criou o subtítulo (erroneamente creditado a Flávia Portela por mim) e organizou a feitura completa da obra, do início ao fim. Ela ficou triste e enciumada porque não fiz jus à participação dela no projeto, e com toda a razão. Fica aqui o registro da participação dela, aliás, sem a qual o livro sequer teria existido. E o meu pedido público de desculpas.